segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

POEMAS DE IVERSON CARNEIRO

inéditos


O poeta autografando seu livro MOLEQUE VELHO na Biblioteca Pública Municipal de Miracema - em 15/09/2006


RECEITA DE AVÔ-2005

aos meus netos Iverson e Shoghi


Junte uma porção
de sabedoria adoçada,
enes doses duplas
de paciência redobrada
e anos e anos
de aprendizado, com paixão.

Misture tudo.
Unte a forma
com o brilho
da idade acontecida
e leve ao forno,
em fogo brando.

O tempo
é o determinado
pelas tramas da vida.
Pronto:
lambuze os lábios,
saboreie um avô.



VADIO DE CASACA-2005


Quem quiser que me faça,
por Deus, um vadio de casaca,
uma sombra parada no ar,
uma estrada de chão,
um serafim lá do alto,
um devorador de emoções.

Quem quiser de mim outra coisa,
que escreva no quadro de avisos
o perigo a ser relatado
e delete o mau intencionado
do visor do computador
e me deixe somente o bandido.

Quem puder que me assalte
e assole com a velocidade do vento
e a força dos cinco sentidos;
um amor amplificado,
medido em decibéis de gemidos
e areia de ampulheta.

O relógio de ponto quebrado,
um fosso no chão, um labirinto,
um anjo bebendo absinto;
o tempo parado, outra coisa,
o vinho, o poeta, a palavra
e uma folha de papel de borrão.



SOBRE SONHOS-2006

pra MANAÍRA, minha filha


Lá vai ela,
centímetro a centímetro,
sonho crescendo.

Lá vai ela,
e aos meus olhos
mais que tudo que sonhei.

Ela e seus sonhos
(meus sonhos)
de menina mulher.

E de uma insônia
que me pega,
ela aproveita e segue
o canto que brota
do ventre das estrelas.

E cada verso que morre
se transforma em outro sonho,
que pinta de cores
as esquinas da cidade.

E tanto grita esse sonho,
que já não caibo mais em mim.
E tanto cresce esse sonho,
que já não cabe mais em si.



SOBRE POEMAS E PANOS-2006


Panos de prato
enxugam louças,
poemas enxugam
sentimentos.

Poemas
em panos de prato
enxugam
sentimentos de louça.



RETRATO DE VESTIDO VERDE-2001


O rosto claro,
desescondido na fotografia,
lençol branco
que a pureza pede
em romaria.

O rosto no retrato
não revela além
do que o vestido verde,
maliciosamente,
nos oferece e principia.

Seios alvos,
colo claro, ventre branquinho;
e pelos dourados,
que só o laser da poesia
dá de conta a imaginar.

Ah, vestido verde!
Teu cheiro de mantra,
invólucro vadio,
entontece o verbo
e tira o poeta do sério!



POESIA DA TERRA DOS HOMENS-2007


Cantar com o silêncio
a poesia da terra dos homens,
que fere e marca de saudade,
como faca amolada
no rosto do jagunço do coronel.

O canto que explodir
dessa massa de homens nus,
sementeará a terra do gozo,
de onde brotarão
todos os tormentos da jagunçada.

E o céu se fará azul
e cheio de nuvens, a mandar
uma chuva inteira de estrelas,
que bordarão o traje de gala
para a noite do padroeiro.

E o homem chorará de alegria,
e a mulher chorará de alegria,
e a criançada brincará sem culpas
aos pés da estátua do santo
e nos brinquedos de quebrar.



A LUA-2006


Quantas faces tem a Lua,
esta arrogante criatura,
que carrega em seu colo
um vinho de boa safra
e um panegírico cor de rosa?!

E contra o homem
arremete com a força
e o peso do corisco,
e lhe sapeca um guiso
no pescoço, corpo que cai!

Qual dentre essas faces
é aquela verdadeira,
que lhe revela inteira
e lhe eleva sorrateira
às calendas da paixão?!

E qual, ainda, escamoteia
a sereia desenhada na pedra,
o calendário chinês,
o sexo da heroína de Tróia
e a rapidez do revólver na tela do cinema?!

Qual lua me desvela e arruína?
Se cheia, consola e pranteia,
se nova, noite de salteadores,
se minguante ou crescente,
sol nascente e oração!

Que segredos da Lua
são contados por duendes e estetas,
por estrelas e planetas,
por caracóis e dinossauros,
por sentinelas e príncipes?!

A folha que cai na terra
tem dois metros e meio de lonjura,
a Lua no céu, esfera.

Um homem é morto
com um tiro certeiro,
a Lua no céu, esfera.

Um sonho é um doce
que se devora em minutos,
a Lua no céu, esfera.

O poema, e seus cânticos,
é dito da boca pra fora,
a Lua no céu, esfera.

O santo da casa
faz um milagre por dia,
a Lua no céu, esfera.

A Lua no céu, espera
o milagre de um deus
que lhe ame e adormeça.



ANTI ODE A UM POETA
ENVELHECIDO EM
BARRIL DE CARVALHO-2005

a Caetano Veloso


Quando os raios do sol
dormirem no espelho da tua cama,
tu vais ver quem bem te ama,
ser quem melhor te engana,
a flor do Chico ao meio dia,
embriagado em vinho e lume.

Quando te encontrares preso,
me libertarei da tua prosa,
da tua verve, da tua rosa
de Hiroshima mon amour;
teu Godard distante,
o errante navegante.

Caminhando a favor do vento,
o pensamento não mais te alucina;
apenas te conhece e contamina
o teu sol das américas,
de sheilas, sangalos, seletas
naves mercury, em moedas de mercúrio.

Porquê és lindo, poeta,
em tuas ondas, teu mar
de harpias, piranhas,
que nunca vão ter teu axé,
a pílula que não tomaste
e a anti música do Tom Zé.



BARRULHADAS

a Euclides Amaral e Eduardo Ribeiro


Visto um bêbado de teias
e tatuagens coloridas,
que não decifro
nem carrego, de pesadas.

Toda humana brevidade
que me toca o verbo,
não respira sexo
nem um moribundo coelho.

Não me aposso de casas,
não me fracasso outra vez,
não badalo sinos
nem espantalho-me todo.

Meu escrito ébrio
descreve uma rota de colisão
entre a tarântula do jardim
e o avião que apita na curva.

Um trem sobrevoa-me
a alma em desatenção;
qualquer poetância tosca
salva-me e me funda.



CAFÉ COM PÃO-2007


A cidade dorme,
à noite dorme.

Prédios,
luzes apagadas,
dormem.

A cama de hospital,
a hemoptise,
o barulho do trem.

De tudo isso,
saudade mesmo,
só do barulho do trem.



CANÇÃO DA NUVEM QUE PASSA-2008


A nuvem que passa,
não existe
entre o cérebro
e a certeza.

É dor por nada,
solidão superlativa,
entre a sarjeta
e o castelo de cartas.

É porrada certa,
arroxeando a alma,
entre o nexo
e o incomunicável.

Não são infinitos
os gritos da dor,
mas intercalam-se
até o infinito.

E entre essa finitude
e a porta, que não se abre,
resta uma fresta
chamada vida inteira.



OUTONO DA ESPERA-2006

pro Igo, meu filho


A saudade, feita
de ásperas sombras,
dói uma dor
que só a presença revoga.

E nas lonjuras
do coração apertado,
saudade que sangra
o caramanchão da janela.

Não cabe mais
a sentença que se esgarça,
nem a angústia
que finca estacas no jardim.

Esbraveja o silêncio,
como cacos de vidro
que cortam meus olhos
dos espelhos d’água.

Aturdidos, os ossos
viram nuvens, que ditam
o ritmo do poema
e o frio da noite de espera.



PAIXÃO DE RUA-2003


Apaixonei-me pela Lua.
Paixão vira-lata, vadia, de rua;
que ladra, agarra,
beija, aconchega,
mas não morde;
minha paixão de rua
não me fode.

Dessa paixão me acometo,
me arrependo, me arranco o couro;
paixão de esmeralda, de prata, de ouro,
que brilha no escuro,
mas não morde;
minha paixão de rua
não me fode.

Paixão mesquinha, correta,
sem amor;
arranha, molha,
seca, molha de novo,
mas não morde;
minha paixão de rua
não me fode.

Enfim, paixão vazia...
só um buraco negro no peito,
sem mato, sem mola, sem leito,
fera sem dente
que não morde;
minha paixão de rua
não me fode.



INEVITABILIDADES-2007


A bala perdida
encontrou-se ajoelhada
no olho do furacão,
onde não há sobrevida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

O corpo que cai dominado,
aos pés do inimigo glorificado,
menos sonha que destrói,
é rasgo e sangra na ferida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

Do temporal que vem de cima,
da nave que afunda no oceano,
da brisa que desconjunta-se toda,
o céu é o ponto de partida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

Não existe pureza nem poesia,
nem santidade nem fantasia,
no vestido que brilha
sobre a pele da estrela enlouquecida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

Como um duende ferido,
um curupira sem floresta,
o vôo cego do trapezista
e o riso amarelo do palhaço,
a canção é sempre
um réquiem para a vida.



O SOLDADO E O SONHO-2008

a Tanussi Cardoso

Nada existe
entre o poeta e a palavra,
que não seja
denso corredor de sonhos.

A vida, aqui fora,
clama pela falta
da ternura desnecessária,
que assola os poetas.

É pra se crer,
mesmo sem ver,
que o deus dos sonhos
morreu afogado?

À primeira noite
da crise do sonho,
não lhe foi permitido ser deus;
morreu soldado.

O poeta e o soldado,
munidos de seus sonhos
e espadas,
lancetaram a escuridão.

E o corredor de palavras
iluminou-se feericamente,
inundado por vagalumes
e menestréis em casacas.

Um casal de rouxinóis
casou-se entre padres e pastores,
e fez-se a festa
e o regalo das flores.



A SOMBRA DO PINHÃO-2009


À sombra voluptuosa
do imenso pinhão,
demônios de fraldas
batizam catedrais
e clérigos sem caráter.

O pinhão é verde
como as vergonhas das moças,
que se deixam possuir
por santos de pau oco,
em mesas esotéricas
de alquimistas carecas.

Sob a densa fumaça
do céu de anjos parasitas
e deuses sem pudor,
a sabedoria jaz,
nua e fria,
entre catacumbas e tesouros.

Explodiu-se a poesia.
Tudo virou fel e ácido
e a nojeira vociferante do tempo
repaginou as tábuas da lei.
Deus não está morto
e ri às gargalhadas.

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