Rio de ladeiras,
civilização, encruzilhada,
cada ribanceira
é uma nação.
Chico Buarque
a Arthur Bispo do Rosário
I
Eu, pecador, me confesso a ti,
oh, Rio todo poderoso!
Eu que pensei, falei, agi e me omiti de ti
e do teu pão fálico e doce,
que contradiz a pureza alva
do Cristo de braços abertos,
no morro do Corcovado.
Eu, oh, Rio todo poderoso,
pecador que sou, profano (e me ufano de)
tuas ruas já tão profanadas,
outrora abençoadas pelos tantos pés,
dos tantos poetas que te fizeram rainha
de todos os pecados e virtudes!
Oh, Rio todo poderoso!
Da Barra outrora dos amantes,
hoje dos condomínios;
da Copacabana princesa dos boêmios,
hoje de simpáticos velhinhos;
de Ipanema e Leblon,
outrora da turma do pier
e dos poetas andarilhos;
da boa Lapa, outrora dos malandros,
hoje dos sonhadores sociais!
Eu, Rio, que nem amantes tenho,
amasio-me com a brisa pecaminosa e quente
do teu verão de janeiro,
e visto meu casaco de lã
no teu julho invernoso.
Pecador que sou, deposito em ti
todas as minhas desvirtudes.
II
São 7 horas da manhã.
Acordo e pela minha janela
tento ver o Cristo e não consigo.
Estou aos seus pés,
mas ele insiste em ficar às minhas costas.
Preciso subir ao terraço. Desisto.
Vou continuar ateu.
Não lhe devo implorar nada,
nem mesmo o seu perdão
pelos meus muitos pecados cometidos.
O Rio é lindo visto do tempo perdido.
Caminho pela rua Humaitá,
de costas para o resto da minha vida,
para o que ficou (para trás).
O futuro é um sorriso sem dentes,
que carece de próteses
como a cidade do Rio de Janeiro.
Estou inteiro e pronto
para esta nova relação, que começa tardia.
No útero desta grande esfinge
de montanhas, mar e asfalto.
Irei decifrá-la – prometo ao Cristo –
ou então a devorarei,
antropofagicamente repartida
entre toda a sua escória.
No meu terreiro quem canta de galo é Exu.
III
Celebremos, pois, a pouca vergonha,
a pouca roupa no carnaval,
a pouca disposição para o egoismo;
que a celebração, profana ou religiosa,
é um ato de generosidade,
e ser generoso é ter a cara do Rio.
Oh, Rio todo poderoso!
Desço a ladeira de Santa Teresa,
desço a escadaria da Penha,
tudo de joelhos,
bêbado e promesseiro que sou,
mas avesso às promessas cristãs
que nos obrigam ao sacrifício das subidas,
sem me importar com o muxoxo das santas.
Por elas é tudo que posso fazer.
Meus banhos de descarrego
tomo-os no pagode da Elvira,
lá no Encantado,
com toda a disponibilidade do meu cinismo.
Não vou de trem nem de metrô,
vou de ônibus,
inebriando-me com a fumaça negra dos carros.
Tenho horror ao ar puro do mato.
Minha paixão é ver os teus morros desencapados
virarem favela e lixo.
Só assim és belo, só assim me sugas,
oh, Rio todo poderoso!...
IV
Caminhem, caminhem e caminhem!
As florestas do Rio
são propícias às caminhadas.
De noite todos os gatos são pardos
e as gatas ronronam nos baixos!
O Rio e seus canteiros de sedução.
Caminhem, caminhem, caminhem!
Ou então chorem e morram
de inveja de mim,
que finjo ter o Rio aos pés
da minha pequenez de poeta!
Ninguém tem o Rio aos seus pés.
Oh, Rio todo poderoso!
Não aguento mais,
nunca estive preparado para a tua beleza!
Teus demônios e fantasmas
sugam o que resta de humanidade em mim,
que debaixo de alguma marquise
choro um choro ácido,
que não é de homem nem de bicho.
Não sou homem nem bicho,
sou poeta, já disse,
e como poeta vomito em ti
as sobras de todas as propagandas
que passam na tela da minha televisão.
Eu sou Rio. Eu sou devorado.
V
Creio no espírito carioca,
no samba que vem dos morros,
no hip hop que vem dos bailes,
nas escolas que desfilam na avenida,
na garota swing sangue bom
que passeia de dia
no frescor refrigerado dos shopings
e à noite cai nas baladas
pra beijar na boca.
Tchutchucas e preparadas, preparem-se!
O espírito das favelas
decretará o fuzilamento irrevogável
de todos os que não amam verdadeiramente o Rio!
Da ponta das gravatas pingará o sangue,
que redimirá os jardins
do espírito carioca.
E o pão nosso de cada dia
será outra vez a saudável galhofa
dos poetas e dos pandeiros,
que santificará o nome do Rio.
VI
Todo dia cruzo a Zona Norte rumo à Penha.
Todo dia sinto o cheiro rubro
que pinga do viaduto da linha Vermelha.
Todo dia têm vespas e escorpiões
na Yellow Avenue das almas decapitadas.
Oh, Rio todo poderoso!
Tua avenida Brasil é uma morena
cheia de curvas e feridas,
prostituída, possuída e postergada,
mas bela como uma ave de cristal
que voa sobre o samba,
que sai dos tamborins dos botecos sujos,
que vestem suas margens de realeza.
Na avenida Brasil,
o óleo que mancha, a borracha que risca,
tudo passa pelo crivo surdo das balas de prata
dos pequenos zorros das favelas,
exércitos de dons diegos de las vielas.
Senhores, a avenida Brasil avisa
que ao nono mês
do surgimento da última mancha de neon,
localizada em sua curva de número vinte e um,
nascerá de suas entranhas
um ser abjeto jamais imaginado
pela mediocridade humano-capitalista,
que dizimará, a golpes de fósforos fiat-lux,
as sedas e rendas
das educadas senhoras de Versailles,
e cantará o Samba da Revolução Doida,
que será promovido a hino
do verdadeiro espírito carioca.
Acordem, pois, senhores,
que o tempo do vosso ocaso está chegando!
E o Rio não está nem aí.
E eu não estou nem aí.
VII
Desabo sob o peso das montanhas,
sob a força das ondas das ressacas,
sob as dores do teu chão perfurado
pelas tantas e concretas colunas
que sustentam a tua soberba senhorial,
oh, cidade do Rio de Janeiro!
O canto onde moro e de onde destilo
minhas preces de angústia atéia,
é o canto de onde te vejo
e mergulho em tua escuridão
de cidade mariposa.
Possuir-te nunca, me diz a propaganda,
que possuir-te requer versos de Armani,
e eu, caipiríssimo,
calço os meus com sandálias de dedo,
iguais as da atriz que recusa
minha pobríssima coleção de borboletas.
Os meus versos são minhas borboletas,
que voam do teclado
para a tela do computador,
onde as aprisiono.
Quero beber meu guaraná Dolly
com pudim de pão,
mas a propaganda me diz que não devo;
quero sair por aí,
vestindo apenas um calção rasgado,
mas a propaganda me diz que não devo;
quero compor
um poema em colisão,
mas a propaganda me diz que não devo;
quero, poeta apaixonado,
amar-te com toda a perversidade dos meus versos,
mas a propaganda me diz que não devo;
que sem um bom vinho francês
com salmão defumado ou caviar russo,
jamais te conquistarei.
VIII
Morro a cada dia.
Hora a hora, minuto a minuto.
E a cidade do Rio de Janeiro
é testemunha da minha morte inexorável.
Morro a cada dia,
mas não desisto de viver.
Enquanto um fiapo de vida restar
em meu corpo cada dia mais velho,
serei poeta. Serei poeta até o fim.
E das mulheres que tive,
das paixões arrebatadoras,
guardo somente a minha poesia.
O amor mo deu a cidade do Rio de Janeiro.
Amor suave e pecaminoso,
amor vulcão e amor estrela,
Lapa e Cristo Redentor,
amor mo deu a cidade do Rio de Janeiro.
Amor fervura e amor carícia,
amor amante a qualquer hora,
amor amigo em qualquer tempo,
amor mo deu a cidade do Rio de Janeiro.
Em cada esquina do Rio de Janeiro
há um confronto entre os meus olhos
e a bela imperfeição da poesia.
A minha morte em trânsito,
deixo-a para as futuras gerações,
junto com a inutilidade das minhas palavras.
IX
Penso estar contaminado por este poema.
Pouco ou nada mais tenho a dizer.
Estou sentado no Campo de Santana.
Não me sinto bem. Desisti de ir trabalhar.
Prostitutas sobrevoam minha cabeça,
ofertando-me plumas e pétalas de carne flácida.
São jovens e são velhas desde a juventude.
Não escondem em si nenhuma beleza,
tudo é feiura e (des)herança,
como os buracos das ruas do Rio de Janeiro.
Os buracos onde a cidade se enterra,
como os monges na clausura de suas celas.
Oh, Rio todo poderoso!
Salve-me, salve-me, salve-me!
Salve-me dos teus postes, das tuas pontes,
dos teus viadutos sobre rios apodrecidos!
Dos cavalos de pau dos teus motoristas doidos,
da sisudez policialesca
da tua guarda municipal corrupta,
dos teus meninos que cheiram cola e jogam bola!
Não te quero Pasárgada nem Grosny...
não te quero Pompéia nem Bagdá...
não te quero Sodoma nem Cabul...
não te quero Gomorra nem Port au Prince.
Quero-te cidade viva, cidade amante,
quero-te e às tuas saias rodadas,
em permanente e elegante trotoir,
feito bela cortesã medieval.
Não quero os teus últimos dias.
X
Um tapa na cara
e o vento que chora na minha janela.
A poesia é uma fotografia
feita de palavras.
O Rio é uma poesia
feita de mar e montanha.
Entre o mar e a poesia,
entre a montanha e a fotografia,
divido minh’alma de poeta.
O Maracanã que sacode aos domingos,
o vai e vem das torcidas,
os diversos matizes da paixão.
O verde grená que me encanta,
o rubro negro das multidões,
a Cruz de Malta do Almirante da colina,
a majestosa estrela solitária
e o diabo rubro tijucano.
Tudo isso e o cheiro de pele queimada,
vindo das areias de Copacabana.
Aproprio-me do poeta
e rogo ao deus dos ateus
um tiquinho dos teus muitos prazeres.
Há muito não vou à Madureira!
Não vou à Portela, ao Império,
à Mangueira, ao Salgueiro;
da Baixada não tenho notícias.
Há muito não sinto o teu cheiro,
oh, Rio todo poderoso!
Logo eu que sempre sonhei viver montado
em teu dorso de cidade fêmea!
XI
Arrecado-me em tuas curvas atapetadas,
sobras de vida que foram ficando,
nesses anos de paixão namoradeira.
Do nada, do nada, um batom vermelho
e uma sina de afogar fantasmas...
A cidade grande e seus fantasmas.
Oh, Rio todo poderoso!
Tua silhueta assombrosa,
incubadora de mil metáforas,
cabe perfeitamente bem
nas mandíbulas do meu poema carnívoro.
Faço barba e tomo banho,
frivolidades naturais do dia a dia.
Saio refeito do chuveiro,
pronto para devorar-te
e às minhas incertezas.
Namorar minha mulher cidade é o que quero,
além de sujar a tela do computador
com meus restos de poesia
que catei pelas tuas ruas e bares.
XII
Mendigos sentados nas calçadas,
camelôs sentados nas calçadas,
escritores sentados nas varandas;
velhinhas observam das janelas.
A morte penetra nos apartamentos
à velocidade da luz,
pequeno foguete de milímetros,
milimétrico em sua precisão.
Não existem mais sonhos.
Tudo virou realidade,
dura como a pena do poeta.
Oh, Rio todo poderoso!
Ruas e ruas de beleza infensa
e zelenas de proverviais contradições
e és cidade que não se acabou;
e acabo-me em nossas sortidões
de amantes que não sangram mais,
apesar de todo o desfeito.
Não entro sozinho em teus túneis,
não caminho pelo calçadão,
quase nada ando pela Lagoa,
apesar de estar bem perto dela.
Fico mais em casa,
onde o teu perfume me basta.
Sou passivo sim. Quase covarde.
Não me estimula o enfrentamento
com teus (tra) ficantes armados
de paixão e AR15.
Soluço por teus dias nublados,
mas não largo a tua calda de cidade cometa.
XIII
A larga avenida fede.
São oito cadáveres na vala.
Meio fio tingido de vermelho.
O Rio pulsa
e o meu tempo é cada vez mais pouco
como são cada vez mais poucas
as árvores da cidade
e as opções de cura.
Oh, Rio todo poderoso!
O veneno espalhou-se
pela corrente sanguínea das ruas!
Não faço alarde da nossa miséria.
Deixo-me, num dia de chuva,
andar de ônibus pelo Rio nublado.
O calor do motor seca o dia
e me deixa à deriva.
Sou um palhaço atônito,
que não pinta a cara,
não dá cambalhotas,
não se veste de saias,
não contempla o horizonte,
não conta o ouro do Rei.
Apenas ama esta cidade
com um amor inexorável,
sempre olhado de cima...
Meu complexo é ser pequeno e feio
diante das tuas montanhas.
XIV
O Rio é um poema feito pra poucos.
Todo o resto são os afogados,
que a sobrevivência impede de amar.
Sê cínico, oh, poeta afogado,
que as árvores podres da cidade
não cairão sobre a tua cabeça!
Não cabem no verso desbotado
nenhum dos talentos adormecidos nas ruas,
nenhuma fantasia de Gioconda,
ainda que embigodada por Dali,
nenhuma canção medieval,
nenhum poema de Drummond,
nenhum cético, nenhum crente,
nada que não te compartilhe a dureza
de cidade-mãe devoradora.
O pergaminho onde está escrito
que o meu fim será em ti,
desbotou como a poeira na chuva.
Os teus regaços, as tuas fontes, os teus mares,
oh, Rio, todo poderoso,
não nos salvarão da morte inevitável.
E aí só restará a sujeira dos mendigos,
a catar os restos da tua onipotência.
XV (e último)
Estou completamente sem inspiração.
Por onde andam mesmo os versos toscos,
que não vêm mais ao meu encontro?
A cidade não mais me inspira...
O Corcovado não mais me inspira...
O Pão de Açúcar não mais me inspira...
Copacabana não mais me inspira...
Penha e Candelária não mais me inspiram...
A Praça Mauá não mais me inspira,
com suas ruelas prostituídas...
A Avenida Brasil não mais me inspira...
Os bondinhos e os “bondes” não mais me inspiram...
A polícia, chutando barracos
na favela, não mais me inspira...
A cara de pênis murcho do cardeal
não mais me inspira.
Oh, Rio, todo poderoso!
A cidade de São Sebastião está falida
e é preciso que se mate o santo
para que renasça a orgia.
Na Cidade Noite do Rio de Janeiro,
na Cidade Sol do Rio de Janeiro,
não cabem santos, salvo os dos terreiros,
que trepam com Oxum, Iansã e Iemanjá,
padroeiras dos desesperados.
Não quero mais saber da inspiração desnecessária.
Agora, vou comer meu amor na janela
e os nossos gemidos gritarão aos quatro ventos
que o poema morreu em aberto.
E o féretro sairá do mausoléu da Academia,
direto para os bordéis
que lho façam renascer.
IVERSON CARNEIRO
escrito entre os anos de 2004 e 2006
ResponderExcluirDe todos, este é o meu favorito, já lhe disse isto. Mas que fique aqui registrado.
ResponderExcluirParabéns pelo talento.