por Tanussi Cardoso*
inverno/2000
Como nos ensina Messody Benoliel, “os repentistas ou improvisadores, em diálogos atraentes, em versos setessilábicos ou decassilábicos, se apresentam através das modalidades conhecidas como Mourão, Martelo, Galope à Beira Mar, em desafios ou pelejas, onde o mote ou tema poderá ser previamente estabelecido antes do início da cantoria”.
O cordel, geralmente, tem fundo religioso, com sentido moralista, levando ao povo seu desconforto com relação à desagregação dos costumes e à corrupção governamental.
Quando um poeta como Iverson Carneiro faz um livro de poemas de cordel, nos dá uma alegria imensa, porque traz novas leituras para seus temas e motes, retirando do cordel a aura preconceituosa que nossa elite intelectual tem dele; preconceito que o exclui das nossas faculdades de letras, para quem o cordel não passa de subliteratura. Só por essa razão a empreitada já seria digna de aplausos. Porém, Iverson Carneiro é, antes de tudo, excelente poeta, e faz neste pequeno grande livro uma belíssima poesia de cordel urbano (expressão que ouso retirar de outro grande artista, Lapi), como, também já o fizera, com desenvoltura, o poeta Flávio Nascimento.
A poesia de cordel – e a de Iverson Carneiro, com certeza – tem uma concepção encantatória, mágica, ritualística. Traz para os grandes centros esse canto do povo, antes restrito praticamente ao sertão nordestino.
Os meios de comunicação, igualmente, retiram o cordel, seus repentistas e cantadores, do isolamento de origem, contaminando sua linguagem. E a pergunta que se pode fazer é se essa arte primitiva, cabocla, pode se perder com a mistura de influências urbanas.
Particularmente, creio que artistas verdadeiros, como Iverson Carneiro, só têm a somar, a fazer a tradição cordelística crescer. A urbanização do cordel pelos artistas dos grandes centros dão a ele novas roupagens, aumentando as abordagens política e nacional dos seus temas. Essa urbanização não faz com que seus cantadores e artistas populares percam o fio de suas raízes, do seu chão primitivo. Ainda é comum no Nordeste – apesar da televisão e do cinema – pessoas cantarem cordel maravilhosamente. Otacílio Batista, Cícero do Nascimento, Lourival Vitorino, Oliveira de Panelas... muitos já gravaram seus cordéis em CDs, tornando-se bastante populares no Sul e no Sudeste do país, como o sensacional Geraldo do Norte, sem que suas origens se percam, deixem de existir.
E Iverson Carneiro não tem rótulos. É poeta. E dos bons. Filho de Oswald de Andrade, faz sonetos perfeitos. Irmão de Torquato Neto e Cacaso, faz cordéis legítimos. E, da mesma forma que resgatou, com sinceridade e genialidade, a forma clássica do soneto (o que, também com maestria, fez outro poeta de sua geração, o fantástico Glauco Matoso), ele reverte a ótica dos cordéis e nos faz vê-los (lê-los) com olhos citadinos, sem que a pureza original se perca.
Iverson Carneiro, poeta da geração 70, é representante da melhor poesia brasileira contemporânea. Desbunde, bares, baseados, Glauber, Caetano, Chico e, agora, Nordeste revisitado – por que não?
Cantador ele sempre foi. Fundador do movimento da poesia marginal da Paraíba, juntamente com o cantor e compositor Chico César, Iverson Carneiro sempre disse poemas pelas ruas e praças do país: João Pessoa, Rio, Niterói, Salvador, Vitória, São Paulo... até mesmo na Argentina, não fosse ele um filho de Belém do Pará.
Em Capa de corDel há versos legítimos e brilhantes, sempre, na melhor tradição cordelística, defendendo causas, comprando brigas em favor de seus ideais, levantando bandeiras, fazendo manifestos. Mas Iverson Carneiro não perde nunca o bonde da história, antenado com o seu tempo, cioso do melhor versejar. E nos seus versos tudo cabe: martelos, cânticos, mourões... cordéis de primeira linha, que não deixam a desejar aos seus mestres primeiros e nordestinos. São versos ritmados, rimados, sem medo da sua brasilidade. E, como nos ensinou Mário de Andrade, por cantarem a nossa gente, falarem a nossa língua, por serem autenticamente nacionais, são versos universais, como quer a boa poesia.
Em seus cordéis cabem louvores à amada;
“Uma noite não é nada,
pra dormir com meu amor.”
Como não cabe o medo de ser considerado brega;
“eu, sem medo nenhum de ser cafona,
galopei no martelo o chão da Barra.”
Pois o poeta sabe que vive num país simples e belo;
“neste Brasil de caboclo,
de mãe preta e pai João.”
Num país tão (demo) crático, que tem cordel – e dos bons – até pro roqueiro Lobão;
“Meio peixe, meio morte/meio bala, Rio sem sorte;
meio dourada, mareada/meio tom no amanhecer.”
E se ainda persistir qualquer dúvida sobre o poder de fogo deste poeta brasileiro, é só se deixar (en) levar pela obra prima dedicada ao poeta Rodrigues Pinagé, “INFÂNCIA”, onde diz e confessa: “dou banho no verso em Ajuruteua.”
Iverson Carneiro não trai Machado, nem Baudelaire, nem Bukovski, nem a ele mesmo – ao contrário, continua lucidamente seu caminho poético de “mostrador” da realidade, de “gritador” das dores do seu tempo, de solidário poeta dos seus irmãos.
Cordel é sinônimo de poesia popular. Linguagem simples. Comunicação instantânea. Musicalidade. Improviso. E, a partir deste livro, sinônimo, igualmente, de Iverson Carneiro.
Avoé, irmão poeta! Salve, cordel de braços largos! Axé, meu bom menino guerreiro!
*Tanussi Cardoso é poeta, jornalista e presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro
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