segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

POEMAS DE IVERSON CARNEIRO

inéditos


O poeta autografando seu livro MOLEQUE VELHO na Biblioteca Pública Municipal de Miracema - em 15/09/2006


RECEITA DE AVÔ-2005

aos meus netos Iverson e Shoghi


Junte uma porção
de sabedoria adoçada,
enes doses duplas
de paciência redobrada
e anos e anos
de aprendizado, com paixão.

Misture tudo.
Unte a forma
com o brilho
da idade acontecida
e leve ao forno,
em fogo brando.

O tempo
é o determinado
pelas tramas da vida.
Pronto:
lambuze os lábios,
saboreie um avô.



VADIO DE CASACA-2005


Quem quiser que me faça,
por Deus, um vadio de casaca,
uma sombra parada no ar,
uma estrada de chão,
um serafim lá do alto,
um devorador de emoções.

Quem quiser de mim outra coisa,
que escreva no quadro de avisos
o perigo a ser relatado
e delete o mau intencionado
do visor do computador
e me deixe somente o bandido.

Quem puder que me assalte
e assole com a velocidade do vento
e a força dos cinco sentidos;
um amor amplificado,
medido em decibéis de gemidos
e areia de ampulheta.

O relógio de ponto quebrado,
um fosso no chão, um labirinto,
um anjo bebendo absinto;
o tempo parado, outra coisa,
o vinho, o poeta, a palavra
e uma folha de papel de borrão.



SOBRE SONHOS-2006

pra MANAÍRA, minha filha


Lá vai ela,
centímetro a centímetro,
sonho crescendo.

Lá vai ela,
e aos meus olhos
mais que tudo que sonhei.

Ela e seus sonhos
(meus sonhos)
de menina mulher.

E de uma insônia
que me pega,
ela aproveita e segue
o canto que brota
do ventre das estrelas.

E cada verso que morre
se transforma em outro sonho,
que pinta de cores
as esquinas da cidade.

E tanto grita esse sonho,
que já não caibo mais em mim.
E tanto cresce esse sonho,
que já não cabe mais em si.



SOBRE POEMAS E PANOS-2006


Panos de prato
enxugam louças,
poemas enxugam
sentimentos.

Poemas
em panos de prato
enxugam
sentimentos de louça.



RETRATO DE VESTIDO VERDE-2001


O rosto claro,
desescondido na fotografia,
lençol branco
que a pureza pede
em romaria.

O rosto no retrato
não revela além
do que o vestido verde,
maliciosamente,
nos oferece e principia.

Seios alvos,
colo claro, ventre branquinho;
e pelos dourados,
que só o laser da poesia
dá de conta a imaginar.

Ah, vestido verde!
Teu cheiro de mantra,
invólucro vadio,
entontece o verbo
e tira o poeta do sério!



POESIA DA TERRA DOS HOMENS-2007


Cantar com o silêncio
a poesia da terra dos homens,
que fere e marca de saudade,
como faca amolada
no rosto do jagunço do coronel.

O canto que explodir
dessa massa de homens nus,
sementeará a terra do gozo,
de onde brotarão
todos os tormentos da jagunçada.

E o céu se fará azul
e cheio de nuvens, a mandar
uma chuva inteira de estrelas,
que bordarão o traje de gala
para a noite do padroeiro.

E o homem chorará de alegria,
e a mulher chorará de alegria,
e a criançada brincará sem culpas
aos pés da estátua do santo
e nos brinquedos de quebrar.



A LUA-2006


Quantas faces tem a Lua,
esta arrogante criatura,
que carrega em seu colo
um vinho de boa safra
e um panegírico cor de rosa?!

E contra o homem
arremete com a força
e o peso do corisco,
e lhe sapeca um guiso
no pescoço, corpo que cai!

Qual dentre essas faces
é aquela verdadeira,
que lhe revela inteira
e lhe eleva sorrateira
às calendas da paixão?!

E qual, ainda, escamoteia
a sereia desenhada na pedra,
o calendário chinês,
o sexo da heroína de Tróia
e a rapidez do revólver na tela do cinema?!

Qual lua me desvela e arruína?
Se cheia, consola e pranteia,
se nova, noite de salteadores,
se minguante ou crescente,
sol nascente e oração!

Que segredos da Lua
são contados por duendes e estetas,
por estrelas e planetas,
por caracóis e dinossauros,
por sentinelas e príncipes?!

A folha que cai na terra
tem dois metros e meio de lonjura,
a Lua no céu, esfera.

Um homem é morto
com um tiro certeiro,
a Lua no céu, esfera.

Um sonho é um doce
que se devora em minutos,
a Lua no céu, esfera.

O poema, e seus cânticos,
é dito da boca pra fora,
a Lua no céu, esfera.

O santo da casa
faz um milagre por dia,
a Lua no céu, esfera.

A Lua no céu, espera
o milagre de um deus
que lhe ame e adormeça.



ANTI ODE A UM POETA
ENVELHECIDO EM
BARRIL DE CARVALHO-2005

a Caetano Veloso


Quando os raios do sol
dormirem no espelho da tua cama,
tu vais ver quem bem te ama,
ser quem melhor te engana,
a flor do Chico ao meio dia,
embriagado em vinho e lume.

Quando te encontrares preso,
me libertarei da tua prosa,
da tua verve, da tua rosa
de Hiroshima mon amour;
teu Godard distante,
o errante navegante.

Caminhando a favor do vento,
o pensamento não mais te alucina;
apenas te conhece e contamina
o teu sol das américas,
de sheilas, sangalos, seletas
naves mercury, em moedas de mercúrio.

Porquê és lindo, poeta,
em tuas ondas, teu mar
de harpias, piranhas,
que nunca vão ter teu axé,
a pílula que não tomaste
e a anti música do Tom Zé.



BARRULHADAS

a Euclides Amaral e Eduardo Ribeiro


Visto um bêbado de teias
e tatuagens coloridas,
que não decifro
nem carrego, de pesadas.

Toda humana brevidade
que me toca o verbo,
não respira sexo
nem um moribundo coelho.

Não me aposso de casas,
não me fracasso outra vez,
não badalo sinos
nem espantalho-me todo.

Meu escrito ébrio
descreve uma rota de colisão
entre a tarântula do jardim
e o avião que apita na curva.

Um trem sobrevoa-me
a alma em desatenção;
qualquer poetância tosca
salva-me e me funda.



CAFÉ COM PÃO-2007


A cidade dorme,
à noite dorme.

Prédios,
luzes apagadas,
dormem.

A cama de hospital,
a hemoptise,
o barulho do trem.

De tudo isso,
saudade mesmo,
só do barulho do trem.



CANÇÃO DA NUVEM QUE PASSA-2008


A nuvem que passa,
não existe
entre o cérebro
e a certeza.

É dor por nada,
solidão superlativa,
entre a sarjeta
e o castelo de cartas.

É porrada certa,
arroxeando a alma,
entre o nexo
e o incomunicável.

Não são infinitos
os gritos da dor,
mas intercalam-se
até o infinito.

E entre essa finitude
e a porta, que não se abre,
resta uma fresta
chamada vida inteira.



OUTONO DA ESPERA-2006

pro Igo, meu filho


A saudade, feita
de ásperas sombras,
dói uma dor
que só a presença revoga.

E nas lonjuras
do coração apertado,
saudade que sangra
o caramanchão da janela.

Não cabe mais
a sentença que se esgarça,
nem a angústia
que finca estacas no jardim.

Esbraveja o silêncio,
como cacos de vidro
que cortam meus olhos
dos espelhos d’água.

Aturdidos, os ossos
viram nuvens, que ditam
o ritmo do poema
e o frio da noite de espera.



PAIXÃO DE RUA-2003


Apaixonei-me pela Lua.
Paixão vira-lata, vadia, de rua;
que ladra, agarra,
beija, aconchega,
mas não morde;
minha paixão de rua
não me fode.

Dessa paixão me acometo,
me arrependo, me arranco o couro;
paixão de esmeralda, de prata, de ouro,
que brilha no escuro,
mas não morde;
minha paixão de rua
não me fode.

Paixão mesquinha, correta,
sem amor;
arranha, molha,
seca, molha de novo,
mas não morde;
minha paixão de rua
não me fode.

Enfim, paixão vazia...
só um buraco negro no peito,
sem mato, sem mola, sem leito,
fera sem dente
que não morde;
minha paixão de rua
não me fode.



INEVITABILIDADES-2007


A bala perdida
encontrou-se ajoelhada
no olho do furacão,
onde não há sobrevida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

O corpo que cai dominado,
aos pés do inimigo glorificado,
menos sonha que destrói,
é rasgo e sangra na ferida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

Do temporal que vem de cima,
da nave que afunda no oceano,
da brisa que desconjunta-se toda,
o céu é o ponto de partida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

Não existe pureza nem poesia,
nem santidade nem fantasia,
no vestido que brilha
sobre a pele da estrela enlouquecida;
e a canção é sempre
um réquiem para a vida.

Como um duende ferido,
um curupira sem floresta,
o vôo cego do trapezista
e o riso amarelo do palhaço,
a canção é sempre
um réquiem para a vida.



O SOLDADO E O SONHO-2008

a Tanussi Cardoso

Nada existe
entre o poeta e a palavra,
que não seja
denso corredor de sonhos.

A vida, aqui fora,
clama pela falta
da ternura desnecessária,
que assola os poetas.

É pra se crer,
mesmo sem ver,
que o deus dos sonhos
morreu afogado?

À primeira noite
da crise do sonho,
não lhe foi permitido ser deus;
morreu soldado.

O poeta e o soldado,
munidos de seus sonhos
e espadas,
lancetaram a escuridão.

E o corredor de palavras
iluminou-se feericamente,
inundado por vagalumes
e menestréis em casacas.

Um casal de rouxinóis
casou-se entre padres e pastores,
e fez-se a festa
e o regalo das flores.



A SOMBRA DO PINHÃO-2009


À sombra voluptuosa
do imenso pinhão,
demônios de fraldas
batizam catedrais
e clérigos sem caráter.

O pinhão é verde
como as vergonhas das moças,
que se deixam possuir
por santos de pau oco,
em mesas esotéricas
de alquimistas carecas.

Sob a densa fumaça
do céu de anjos parasitas
e deuses sem pudor,
a sabedoria jaz,
nua e fria,
entre catacumbas e tesouros.

Explodiu-se a poesia.
Tudo virou fel e ácido
e a nojeira vociferante do tempo
repaginou as tábuas da lei.
Deus não está morto
e ri às gargalhadas.

do livro MOLEQUE VELHO

Lançamento do livro MOLEQUE VELHO na Biblioteca Pública Municipal de Miracema - em 15/09/2006


O POEMA-2001


Um livro
é um livro,
assim como um verso
é um verso.

A contra capa do livro
é o reverso do verso,
assim como o poema
é um conjunto de versos...

- Tudo definição matemática! -

Mas o poema
gosta de matemática
e de emoções fortes,
e é caótico como as equações,
antes de suas resoluções.

O poema não é exato,
é ato de criação
e carametade do fato.

O verso é um pedaço
de poema e desespero,
construído a fogo e aço.



MEDIAÇÃO DE POETA-1999


A palavra,
procuro-a no espelho,
onde, sei, se enfeita
feito meninas,
vaidosa, fingindo-se mocinha.

O poema,
velho e mau humorado,
se irrita com a futilidade da palavra
e se nega a existir
sem o sangue das chacinas.

Ah, o poema!
Velho amigo que beija a ponta da pena,
mas não se convence
da utilidade do verso de amor
e se finca na dureza das ruas!

A palavra?!
Procuro-a no espelho.
O poema?!
Encontro-o nas ruas.
E tento um acordo entre a palavra e o poema.



MEU VÍCIO-2000


Meu vício é fazer versos.
Simples como um cigarro
comprado a varejo.

Bastam-lhe um isqueiro,
a brasa, a fumaça
e um pulmão desatento.

Meu vício de fazer versos
não tem a dificuldade
de apertar o fumo na seda,

nem a sofisticação
da nota de cem enrolada,
e giletes alinhando carreiras assépticas.

Meu vício de fazer versos
é simples
como um cigarro aceso.

E rápido
como um câncer
comprado a varejo.



ELA-2001

a Cássia Eller


Ela pororoca rouca,
ela descida do cerrado,
ela viajante do alagado,
que inunda nossos quintais.

Ela rugido de mil borboletas,
que estoura em nossos jardins,
a cantar estripulias
nos ouvidos dos querubins.

Ela luz que até o Sol clareia,
Lua perdida na noite,
ela sangue jorrado do açoite,
ela violência de maré cheia.

Ela malandragem de saia,
criança atrás da verdade,
ela dona de fogo,
identidade de virgem,
ela Saramandaia.

Ela voz nuvem,
ela pecado de inverno,
canto que não vai pro céu;
relicário de poesia,
cantadeira da folia,
pesadelo de Emanuel.



CORRIDAS-2002


Corrida do carrinho de mão,
corrida de um pé só,
corrida do saco,
corrida do ovo na colher.

Corre, criança, corre!
Mas não tenhas pressa
de te tornar adulta,
que o poema espera!



MEUS VELHOS-2001

a Claudio Barradas, Rui Barata e Fernando de Macêdo


Os meus velhos se passaram
e eu já velho fico;
me deixaram de presente
um buquê de sabedorias,
um paneiro de escárnio
e um tanto de poesia.

Os meus velhos se passaram
e eu já velho fico;
me deixaram de presente
um canto de rebeldia,
um amor e uma musa,
e acordes de cantoria.

Os meus velhos se passaram
e eu já velho fico;
me deixaram de presente
um pacote de ironias
e as cinzas das suas vidas
num tacho de vilanias.

Os meus velhos se passaram...
e eu, quando bem velhinho, passarei!
Não deixo aos futuros velhos
nenhuma filosofia,
das contas do que vivi,
só minhas idiossincrasias.

Os meus velhos
e suas hipocrisias,
passarinhos.



A DONA DA LUA-2000


Era uma noite de lua,
vagalumes lumiavam os campos,
lobisomens domavam seus santos
e demônios vomitavam no escuro.

E a moça, que era da noite,
cavalgava seu potro na cama,
desdenhando do Sol e da Lua,
amazona em quarto crescente.

Toda luz que vinha do céu,
era corpo, era rosto, era lança,
era dança na penumbra do breu,
nas batidas de um coração.

Era um sonho numa home page,
o desenho perdido no caderno,
feito a moça da noite de lua,
feito o sangue gravado no pano.

Mas a centelha virgem do dia,
com seus raios de sol abundantes,
destampou a bobina da noite,
deflorou a dona da Lua.



SOBRE O AMOR-2003


O amor não cabe
na pressão de uma panela,
nem é pinguim de geladeira...
o amor – paixão de soqueira.

O amor é vento
que não para de soprar,
chuva que molha de verdade,
planta que precisa de terra e água.

O amor não tem dinheiro,
é farrapo humano
travestido de príncipe,
é fiapo de feijão
que se finge caviar,
é fel, é giló, é de amargar.

E o amor
também tem seus muxoxos;
quando não fala,
o amor vira coxo.

Manca das duas pernas,
dos braços e dos olhos,
implode o coração,
congela o vulcão.

O amor, quando amor,
aprende a dizer não.



AS MULHERES DA MINHA VIDA-1998

para DANI e THAIA, minhas enteadas; LOLA (in memorian) e BRANCA, minhas cadelas; ELIANA, minha mulher.


As mulheres da minha vida
são flores coloridas,
colorindo as jardineiras
das janelas da minha casa.

As mulheres da minha vida
são suas roupas limpinhas,
colorindo os varais
dos meus fins de semana.

Duas das mulheres
da minha vida
vivem no quintal.

Uma, dentes afiados,
destroça dejetos e desejos
largados pelo chão.

A outra, sensual e malemolente,
veste-se de pelo negro,
tal qual uma bela princesa africana.

As de dentro da minha casa,
mais dentro da minha vida,
carregam em seus nomes
as letras mais vadias do alfabeto.

A primeira o T;
de todas as travessuras
que tramei na infância.

A segunda o D;
que deleta com o corpo
os pecados do mundo.

E a principal delas o E;
que embeleza nossa casa
e embriaga meu corpo,
nas noites em que nos enroscamos.

Todas as mulheres da minha vida
têm vida própria.
E passos certeiros e firmes,
que ouso vestir de poesia.



POEMA INACABADO PARA ELIANA-1994


Meu amor por ela não tem alma,
é puro corpo, sangue, sexo,
não tem do espírito a calma,
na cama meu amor não tem nexo;
meu amor por ela é sem traumas.

Meu amor por ela não é santo,
não é demônio, não é duende,
é prazer e desespero e pranto;
dos desvios d’alma independe,
meu amor por ela é encanto.

Meu amor por ela é insano,
destrói, devora, é erótico,
é a paz da carne, é decano
do prazer desvairado, é gótico;
meu amor por ela é profano.

Meu amor por ela é um poema
destroçado pelos dilemas da paixão,
da rotina dos corpos é o lema,
são versos suados de tesão;
meu amor por ela são zil fonemas...



DEUSES E DEMÔNIOS DO AMOR-2003


Quando o amor me diz:
não me venhas com ilusões descabidas,
a ferida, outrora aberta,
despetala como rosa em solidão,
num campo de centeio.

Quando o amor me insiste,
a mim, que não sou apanhador de nada,
metrifico meu padecimento,
verborralizo meu comedimento,
meu coração não se amola com nada,
é só músculo e nada mais.

Quando o amor me sacraliza,
atiro pedras no meio do caminho,
quero um rei pra meu amigo,
nem que seja em Pasárgada,
onde não tem bomba atômica
e mulheres de hortelã são a munição disponível.

Quando o amor me petrifica,
rolo ladeira abaixo
no poema que não se realiza.
Espero um sinal:
de um Deus que não se manifesta,
ou de demônios que me levem para a festa.

Quando o amor, enfim, me ama,
amo em verso e prosa,
ainda que um amor de déspota.



SOBRE O AMOR II-2003


Não existe vida
sem amor.
Na lida do dia a dia
o amor vadia.

Quando o amor ama,
o corpo clama por amor,
e se é feitiço da paixão,
desmancha o chão sob os pés.

O amor é bicho forte,
de sorte que não teme
o descontrole do leme,
nem os azedumes da paixão.

Mesmo na dor é amor;
e se das taras da paixão
se infesta, incendeia
as florestas do coração.

Paixão sem amor
não tem graça,
mas o amor necessita
da paixão velhaca.



CABEÇA-2000

a Walter Franco


UUUMAAA!!!

Uma
Uma
Umama!!!

Uma
Uma
Umama!!!

Uma
Uma
Uma
CABEÇA!!!

Duas orelhas e uma boca,
dois olhos e um nariz,
sobrancelhas e maxilares.

Em cima,
o couro cabeludo;
dentro,
o centro de tudo.



NÓIS-2004


Nóis é feio,
nóis fala errado,
nóis é misturado,
nóis é brasileiro.

Nóis é moreno,
quas sempre boleiro,
quas sempre pequeno,
nóis é brasileiro.

Nóis é dolente,
nóis gosta de rede,
nóis sofre com a seca,
nóis é brasileiro.

Nóis gosta de samba
e de carnaval,
se o calor é forte,
nóis fica no sol.

Nóis se bronzeia
com a luz da Lua,
nóis ingana o tempo,
e o tempo é que sua.

Nóis gosta dos mato
das nossas floresta,
nóis toma umazinha,
nóis gosta de festa.

Nóis é primitivo,
nóis come banana,
nóis dança forró,
nóis não é bacana.

Nóis temo o feijão
com muito jabá,
nóis é do Acará,
nóis canta o baião.

Baião de dois,
som de atabaque,
terreiro de santo,
pagode na praça.

Nóis é brasileiro,
da terra do sonho,
nóis luta e nóis goza,
sem pecado e sem reza.



MOLEQUE VELHO-1998


Meu coração,
veio aberto,
indaga cataratas.

Meu coração,
moleque velho,
mergulha e volta à tona.

Noites e noites
cochicha com o vento,
que sopra coisas do nada.

Meu coração,
mergulho e cataratas,
esperto.

No tempo
meu coração é mudo,
não dá conselhos.

No verso,
lento e bobo,
espectro da paixão.

Dias e dias
vadia pelas folhas,
borrando o branco do papel.

Meu coração,
juntador de cacos,
espelho.



QUETAIS-2002


Máscara no rosto – palhaço,
homem voando – circense,
gesto estranho – nonsense,
fogueira estalando – fagulha.

Agulha no palheiro – procura,
agulha no corpo – injeção,
febre alta – febrão,
mês de novembro – calor.

Bolor – comida estragada,
bolo na mão – palmatória,
uma vida – história,
menino cheirando – cola.

Bola no campo – futebol,
bola pro outro – namoro,
barulho de fogos – estouro,
barulho de folha – silêncio.



PRONOME PESSOAL-2003


Eu existo.
E por existir,
uma febre teima
e me alcança
bem no meio da existência.

Aí insisto.
E por insistir,
a febre vai-se;
e resta somente
um olor de corpo quente,
sobras de um mal
que já não sinto.

Aí eu grito.
E este meu grito rude
é um sinal
de que me necessito.

do livro "OBSERVÂNCIAS DO RIO & outros avulsos"




Projeto ARTE JOVEM BRASILEIRA, no Espaço CONVÉS - Niterói, 02/06/2008

TRAVESSIA-1991


1° ATO BARCA DE NITERÓI

Dois hominhos
e uma menininha,
recém-chegados do norte.
Pais abobalhados
tomam conta...

A baía... os navios...
o castelo e a ilha
cheia de pés de coco.


2° ATO INSÔNIA

A favela e o lixo,
o frio e a lama,
o barraco e o barranco;
tiros na noite...

Choro de criança
e a novidade da chuva
ameaçando tudo.


3° ATO EPÍLOGO

Uma vontade danada
de voltar pra terra.



RELÓGIO DA CENTRAL-1992


Blém! Blém! Blém!
Bate o sino pequenino,
sino de Belém;
nasceu o deus menino,
é meia noite.

Blém! Blém! Blém!
Bate o sino pequenino,
da igreja pequenina,
do interior;
é meio dia.

Blém! Blém! Blém!
Bate o sino majestoso,
da catedral majestosa,
da cidade grande;
é hora da Ave Maria.

Blém! Blém! Blém!
Entre um e outro badalo,
o relógio, calmamente,
vai dizendo das horas.



CINEMAS DO RIO-1991


No Leblon
tem cinemas.

Ipanema e Copa
também têm cinemas.

Largo do Machado,
um montão de cinemas.

Cinelândia
cinéfila...
Rio, um mar de cinemas,
exatamente assim,

cheio de fotografias
como o meu poema.



GESTAÇÃO-1985

ao poeta Sérgio Franco


Papel!
Máquina!
Ação!

Flui o poema
em dedilhados frenéticos.
Sua o poeta,
sorve a idéia,
vomita a palavra.

Papel!
Máquina!
Ação!

Sua o poeta,
flui a idéia,
sorve, frenética, a palavra,
em dedilhados
vomitados.

Papel!
Máquina!
Ação!

Poema pronto.
Filho concebido.



ANTROPOMAGIA-1986


Quando o coelho, assustado,
pulou da cartola,
o expectador faminto,
da primeira fila,

NHOC!!!



CASO DE RUA-1984

O leite no copo,
o gato na mão.

O gato, todo molhado
pela maldade do zelador.
O leite, milimetricamente dividido,
para morrer dilacerado
pelas garras agressivas
das duas fomes.

Nem leite
nem copo agora;

só o gato, ferido,
entoa espasmos
ao ritmo frenético
do tremor do frio.

O garoto, prostrado,
chora soluços dissonantes.
O gato morre. E o zelador
continua seu trabalho
em favor do “bem comum”.



AS MARIPOSAS-1992


A mariposa da minha rua
se chama Lua
e me joga beijos cor de carmim.

A mariposa da rua que eu morava
se chamava Eduarda
e era bela como um sol de primavera.

A mariposa da rua da frente
vive doente
e seu nome é Rebeca.

A mariposa do meu jardim,
de nome Aladim,
gosta de rosa amarela

...................................................................

Lua minguou.
E seus seios volumosos
não mais se estendem na janela,
à espera de homem.

Eduarda, coitada,
morreu na calçada,
embriagada, sifilítica,
em decúbito dorsal, na sarjeta.

Rebeca, moleca,
perdeu todos os dentes,
de um soco bem dado
pelo gigolô Cicatriz.

Aladim, esta sim,
luminosa e faceira,
voa, voa, voa,
sempre mais perto de mim!

..................................................................

As mariposas do meu poema
são meros fonemas,
dos quais me utilizo
para contar esta história.



MORTE DO MENDIGO-1993


Morreu mais um.
Marceneiros dão os últimos retoques
na urna funerária,
sem verniz ou cetim.
Coveiros cavam o chão:
comprimento dois metros,
fundura sete palmos.
Morreu de fome,
morreu de tédio,
ou, quem sabe, como o poeta,
morreu de vodka.
Estendido na calçada,
espera a chegada do padre
para a última ladainha;
mas não tem padre, nem rezas,
nem coroinha vestido de saia.
Espera os convivas do velório,
para beberem
seus últimos instantes sobre a terra;
mas não têm convivas,
nem terra,
nem capela ornamentada com flores.
Morreu de fome,
morreu de tédio,
ou, como preferiria o poeta,
morreu de vodka.
Ao corpo estendido na calçada
uma apenas vela caridosa.
E um enterro numa sepultura,
sem nome na lápide,
patrocinado pela municipalidade.



CASO DE RUA 2-1985

a Ricardo Castanheiro


A bola fez curvas no ar
e quebrou o vidro da janela.
O dono da casa, furioso,
cortou a bola ao meio;
do corte sangraram lágrimas.

Pedras voaram
do coração da molecada,
mais vidros estilhaçados

- revolta -

e mais fúria!

Chama a patrulha
que prende, que bate,
chama a patrulha!

Sai da frente
que lá vêm os “omis”
e as suas mãos cospem fogo!

O mais jovem dos moleques,
no entanto, não teve tempo.
O seu sangue
marcou a história da rua.



“Os túmulos não são discretos. Se não dizem nada, é porque diriam sempre a mesma história;
daí a fama de discrição. Não é virtude, é falta de novidade.”
Machado de Assis


TESTAMENTO-1988


Quando eu morrer,
quero um caixão todo coberto
de papel branco,
cheinho de poesias,
que eu possa ler, bem tranquilo,
no silêncio da minha sepultura.

Mas não colem poemas de amor,
pois que dele eu terei morrido...

Colem poemas de protesto,
desses que falam da fome do povo,
do banqueiro agiota,
do latifundiário cruel e assassino.

Ou então, que falem de vida!
Do verde das matas, do canto dos pássaros,
do marulhar das ondas... da chuva,
da água clarinha do rio.

Quando eu morrer,
só não quero poemas de amor;
pois que dele,
eu certamente terei morrido.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

PREFÁCIO PRA IVERSON

por Chico César

IVERSON CARNEIRO é um poeta do século passado. E é de lá que eu o conheço. Sempre me assustou por trazer a poesia em seu corpo comprido demais, seu cabelo desgrenhado e a fala de hippie nortista, com cerceio e a ausência de alguns dentes. Isso tudo acentuando-se pela voz gutural que teimava em pronunciar-se sempre com vigor. No final do século passado. Mais precisamente no começo dos anos 80. E em João Pessoa, a bucólica capital paraibana.

Era um poeta sem livros. Trabalhava então o deslocamento. Não da palavra em si, mas o seu próprio. Poesia, mesmo, era dita, gritada, gemida, escarrada ali pelo Ponto de Cem Réis, no centro da cidade, ou em auditórios escolares para susto de alguns zelosos diretores e gáudio da juventude irreverente e praieira.

Segundo a lenda o “gigante” vinha do norte, onde nascera. O certo é que sobrevivia do artesanato que fazia e vendia: brincos, pulseiras, colares, esses balangandãs de sempre.

Como dizem as mães de família, o mal anda sempre acompanhado. Iverson, além de amigo dos artesãos, também era cativo das rodas alternativas de João Pessoa. Músicos, poetas, artistas plásticos e atores capitaneados por Pedro Osmar (um misto de todas essas ocupações) reuniam-se sob qualquer pretexto. E lá estava ele, imenso. Assustador. É daí que eu o conheço.


Vivíamos um misto de fim do desbunde, fim do regime militar e abertura política. Algo ali se findava e nós não queríamos findar junto com aquilo. Estávamos, na verdade, começando. Lançando livros mimeografados, fitas cassete com nossas músicas. Era necessário buscar caminhos. Individuais e coletivos. E Iverson Carneiro, experimentado em andanças, inventou o seu próprio.

Publicou seus livros, sempre comprometidos com a liberdade. Deslocou-se, sinuoso como um afluente do Amazonas, para o Rio de Janeiro e daí para Niterói. Agora nos apresenta esse catatau. Uma boa mostra de que se um poeta não se faz com poesias, elas ajudam bastante. Intitula o livro de “MOLEQUE VELHO” num lance autobiográfico com um quê de sentimental.

Para nós, seus leitores, é um presente ver que um poeta do século passado está conosco. Aceso, teso, coeso, coerente. Ajudando-nos a enfrentar o tédio e o preço da boa vodka, num século que começa quase sem poesia. Dá alegria perceber que o rio caudaloso que agora se nos apresenta, é o mesmo igarapé que brotou tempos atrás em terras amazônidas, onde se influenciou pelas águas de Thiago de Melo e depois Ferreira Gullar. E em sua passagem pelo Nordeste bebeu em rio seco nas cacimbas de Patativa do Assaré, Zé Limeira, Oliveira de Panelas, João Cabral de Melo Neto e outros.

Não fica de fora, é óbvio, a escritura de uma geração que é meio um jeito de corpo com a vida e a literatura e que tem a ver com Paulo Leminski, Ana Cristina César, Nicholas Behr, Glauco Matoso, Chico Alvim e afins. Poesia urbana, cheia de afetos e desafetos, cacos e vasos comunicantes; concretos, modernos do Brasil, engajados críticos, cronistas. É assim que agora dá vazão esse jovem e ruidoso rio que se chama Iverson e se imagina velho. Não é que agora ele esteja menos assustador. Eu que já me acostumei um pouco.


São Paulo
Inverno/2002

O EVANGELHO DA CIDADE



Rio de ladeiras,
civilização, encruzilhada,
cada ribanceira
é uma nação.
Chico Buarque

a Arthur Bispo do Rosário

I

Eu, pecador, me confesso a ti,
oh, Rio todo poderoso!
Eu que pensei, falei, agi e me omiti de ti
e do teu pão fálico e doce,
que contradiz a pureza alva
do Cristo de braços abertos,
no morro do Corcovado.
Eu, oh, Rio todo poderoso,
pecador que sou, profano (e me ufano de)
tuas ruas já tão profanadas,
outrora abençoadas pelos tantos pés,
dos tantos poetas que te fizeram rainha
de todos os pecados e virtudes!
Oh, Rio todo poderoso!
Da Barra outrora dos amantes,
hoje dos condomínios;
da Copacabana princesa dos boêmios,
hoje de simpáticos velhinhos;
de Ipanema e Leblon,
outrora da turma do pier
e dos poetas andarilhos;
da boa Lapa, outrora dos malandros,
hoje dos sonhadores sociais!
Eu, Rio, que nem amantes tenho,
amasio-me com a brisa pecaminosa e quente
do teu verão de janeiro,
e visto meu casaco de lã
no teu julho invernoso.
Pecador que sou, deposito em ti
todas as minhas desvirtudes.


II

São 7 horas da manhã.
Acordo e pela minha janela
tento ver o Cristo e não consigo.
Estou aos seus pés,
mas ele insiste em ficar às minhas costas.
Preciso subir ao terraço. Desisto.
Vou continuar ateu.
Não lhe devo implorar nada,
nem mesmo o seu perdão
pelos meus muitos pecados cometidos.
O Rio é lindo visto do tempo perdido.
Caminho pela rua Humaitá,
de costas para o resto da minha vida,
para o que ficou (para trás).
O futuro é um sorriso sem dentes,
que carece de próteses
como a cidade do Rio de Janeiro.
Estou inteiro e pronto
para esta nova relação, que começa tardia.
No útero desta grande esfinge
de montanhas, mar e asfalto.
Irei decifrá-la – prometo ao Cristo –
ou então a devorarei,
antropofagicamente repartida
entre toda a sua escória.
No meu terreiro quem canta de galo é Exu.


III

Celebremos, pois, a pouca vergonha,
a pouca roupa no carnaval,
a pouca disposição para o egoismo;
que a celebração, profana ou religiosa,
é um ato de generosidade,
e ser generoso é ter a cara do Rio.
Oh, Rio todo poderoso!
Desço a ladeira de Santa Teresa,
desço a escadaria da Penha,
tudo de joelhos,
bêbado e promesseiro que sou,
mas avesso às promessas cristãs
que nos obrigam ao sacrifício das subidas,
sem me importar com o muxoxo das santas.
Por elas é tudo que posso fazer.
Meus banhos de descarrego
tomo-os no pagode da Elvira,
lá no Encantado,
com toda a disponibilidade do meu cinismo.
Não vou de trem nem de metrô,
vou de ônibus,
inebriando-me com a fumaça negra dos carros.
Tenho horror ao ar puro do mato.
Minha paixão é ver os teus morros desencapados
virarem favela e lixo.
Só assim és belo, só assim me sugas,
oh, Rio todo poderoso!...


IV

Caminhem, caminhem e caminhem!
As florestas do Rio
são propícias às caminhadas.
De noite todos os gatos são pardos
e as gatas ronronam nos baixos!
O Rio e seus canteiros de sedução.
Caminhem, caminhem, caminhem!
Ou então chorem e morram
de inveja de mim,
que finjo ter o Rio aos pés
da minha pequenez de poeta!
Ninguém tem o Rio aos seus pés.
Oh, Rio todo poderoso!
Não aguento mais,
nunca estive preparado para a tua beleza!
Teus demônios e fantasmas
sugam o que resta de humanidade em mim,
que debaixo de alguma marquise
choro um choro ácido,
que não é de homem nem de bicho.
Não sou homem nem bicho,
sou poeta, já disse,
e como poeta vomito em ti
as sobras de todas as propagandas
que passam na tela da minha televisão.
Eu sou Rio. Eu sou devorado.


V

Creio no espírito carioca,
no samba que vem dos morros,
no hip hop que vem dos bailes,
nas escolas que desfilam na avenida,
na garota swing sangue bom
que passeia de dia
no frescor refrigerado dos shopings
e à noite cai nas baladas
pra beijar na boca.
Tchutchucas e preparadas, preparem-se!
O espírito das favelas
decretará o fuzilamento irrevogável
de todos os que não amam verdadeiramente o Rio!
Da ponta das gravatas pingará o sangue,
que redimirá os jardins
do espírito carioca.
E o pão nosso de cada dia
será outra vez a saudável galhofa
dos poetas e dos pandeiros,
que santificará o nome do Rio.


VI

Todo dia cruzo a Zona Norte rumo à Penha.
Todo dia sinto o cheiro rubro
que pinga do viaduto da linha Vermelha.
Todo dia têm vespas e escorpiões
na Yellow Avenue das almas decapitadas.
Oh, Rio todo poderoso!
Tua avenida Brasil é uma morena
cheia de curvas e feridas,
prostituída, possuída e postergada,
mas bela como uma ave de cristal
que voa sobre o samba,
que sai dos tamborins dos botecos sujos,
que vestem suas margens de realeza.
Na avenida Brasil,
o óleo que mancha, a borracha que risca,
tudo passa pelo crivo surdo das balas de prata
dos pequenos zorros das favelas,
exércitos de dons diegos de las vielas.
Senhores, a avenida Brasil avisa
que ao nono mês
do surgimento da última mancha de neon,
localizada em sua curva de número vinte e um,
nascerá de suas entranhas
um ser abjeto jamais imaginado
pela mediocridade humano-capitalista,
que dizimará, a golpes de fósforos fiat-lux,
as sedas e rendas
das educadas senhoras de Versailles,
e cantará o Samba da Revolução Doida,
que será promovido a hino
do verdadeiro espírito carioca.
Acordem, pois, senhores,
que o tempo do vosso ocaso está chegando!
E o Rio não está nem aí.
E eu não estou nem aí.


VII

Desabo sob o peso das montanhas,
sob a força das ondas das ressacas,
sob as dores do teu chão perfurado
pelas tantas e concretas colunas
que sustentam a tua soberba senhorial,
oh, cidade do Rio de Janeiro!
O canto onde moro e de onde destilo
minhas preces de angústia atéia,
é o canto de onde te vejo
e mergulho em tua escuridão
de cidade mariposa.
Possuir-te nunca, me diz a propaganda,
que possuir-te requer versos de Armani,
e eu, caipiríssimo,
calço os meus com sandálias de dedo,
iguais as da atriz que recusa
minha pobríssima coleção de borboletas.
Os meus versos são minhas borboletas,
que voam do teclado
para a tela do computador,
onde as aprisiono.
Quero beber meu guaraná Dolly
com pudim de pão,
mas a propaganda me diz que não devo;
quero sair por aí,
vestindo apenas um calção rasgado,
mas a propaganda me diz que não devo;
quero compor
um poema em colisão,
mas a propaganda me diz que não devo;
quero, poeta apaixonado,
amar-te com toda a perversidade dos meus versos,
mas a propaganda me diz que não devo;
que sem um bom vinho francês
com salmão defumado ou caviar russo,
jamais te conquistarei.


VIII

Morro a cada dia.
Hora a hora, minuto a minuto.
E a cidade do Rio de Janeiro
é testemunha da minha morte inexorável.
Morro a cada dia,
mas não desisto de viver.
Enquanto um fiapo de vida restar
em meu corpo cada dia mais velho,
serei poeta. Serei poeta até o fim.
E das mulheres que tive,
das paixões arrebatadoras,
guardo somente a minha poesia.
O amor mo deu a cidade do Rio de Janeiro.
Amor suave e pecaminoso,
amor vulcão e amor estrela,
Lapa e Cristo Redentor,
amor mo deu a cidade do Rio de Janeiro.
Amor fervura e amor carícia,
amor amante a qualquer hora,
amor amigo em qualquer tempo,
amor mo deu a cidade do Rio de Janeiro.
Em cada esquina do Rio de Janeiro
há um confronto entre os meus olhos
e a bela imperfeição da poesia.
A minha morte em trânsito,
deixo-a para as futuras gerações,
junto com a inutilidade das minhas palavras.


IX

Penso estar contaminado por este poema.
Pouco ou nada mais tenho a dizer.
Estou sentado no Campo de Santana.
Não me sinto bem. Desisti de ir trabalhar.
Prostitutas sobrevoam minha cabeça,
ofertando-me plumas e pétalas de carne flácida.
São jovens e são velhas desde a juventude.
Não escondem em si nenhuma beleza,
tudo é feiura e (des)herança,
como os buracos das ruas do Rio de Janeiro.
Os buracos onde a cidade se enterra,
como os monges na clausura de suas celas.
Oh, Rio todo poderoso!
Salve-me, salve-me, salve-me!
Salve-me dos teus postes, das tuas pontes,
dos teus viadutos sobre rios apodrecidos!
Dos cavalos de pau dos teus motoristas doidos,
da sisudez policialesca
da tua guarda municipal corrupta,
dos teus meninos que cheiram cola e jogam bola!
Não te quero Pasárgada nem Grosny...
não te quero Pompéia nem Bagdá...
não te quero Sodoma nem Cabul...
não te quero Gomorra nem Port au Prince.
Quero-te cidade viva, cidade amante,
quero-te e às tuas saias rodadas,
em permanente e elegante trotoir,
feito bela cortesã medieval.
Não quero os teus últimos dias.


X

Um tapa na cara
e o vento que chora na minha janela.
A poesia é uma fotografia
feita de palavras.
O Rio é uma poesia
feita de mar e montanha.
Entre o mar e a poesia,
entre a montanha e a fotografia,
divido minh’alma de poeta.
O Maracanã que sacode aos domingos,
o vai e vem das torcidas,
os diversos matizes da paixão.
O verde grená que me encanta,
o rubro negro das multidões,
a Cruz de Malta do Almirante da colina,
a majestosa estrela solitária
e o diabo rubro tijucano.
Tudo isso e o cheiro de pele queimada,
vindo das areias de Copacabana.
Aproprio-me do poeta
e rogo ao deus dos ateus
um tiquinho dos teus muitos prazeres.
Há muito não vou à Madureira!
Não vou à Portela, ao Império,
à Mangueira, ao Salgueiro;
da Baixada não tenho notícias.
Há muito não sinto o teu cheiro,
oh, Rio todo poderoso!
Logo eu que sempre sonhei viver montado
em teu dorso de cidade fêmea!


XI

Arrecado-me em tuas curvas atapetadas,
sobras de vida que foram ficando,
nesses anos de paixão namoradeira.
Do nada, do nada, um batom vermelho
e uma sina de afogar fantasmas...
A cidade grande e seus fantasmas.
Oh, Rio todo poderoso!
Tua silhueta assombrosa,
incubadora de mil metáforas,
cabe perfeitamente bem
nas mandíbulas do meu poema carnívoro.
Faço barba e tomo banho,
frivolidades naturais do dia a dia.
Saio refeito do chuveiro,
pronto para devorar-te
e às minhas incertezas.
Namorar minha mulher cidade é o que quero,
além de sujar a tela do computador
com meus restos de poesia
que catei pelas tuas ruas e bares.


XII

Mendigos sentados nas calçadas,
camelôs sentados nas calçadas,
escritores sentados nas varandas;
velhinhas observam das janelas.
A morte penetra nos apartamentos
à velocidade da luz,
pequeno foguete de milímetros,
milimétrico em sua precisão.
Não existem mais sonhos.
Tudo virou realidade,
dura como a pena do poeta.
Oh, Rio todo poderoso!
Ruas e ruas de beleza infensa
e zelenas de proverviais contradições
e és cidade que não se acabou;
e acabo-me em nossas sortidões
de amantes que não sangram mais,
apesar de todo o desfeito.
Não entro sozinho em teus túneis,
não caminho pelo calçadão,
quase nada ando pela Lagoa,
apesar de estar bem perto dela.
Fico mais em casa,
onde o teu perfume me basta.
Sou passivo sim. Quase covarde.
Não me estimula o enfrentamento
com teus (tra) ficantes armados
de paixão e AR15.
Soluço por teus dias nublados,
mas não largo a tua calda de cidade cometa.


XIII

A larga avenida fede.
São oito cadáveres na vala.
Meio fio tingido de vermelho.
O Rio pulsa
e o meu tempo é cada vez mais pouco
como são cada vez mais poucas
as árvores da cidade
e as opções de cura.
Oh, Rio todo poderoso!
O veneno espalhou-se
pela corrente sanguínea das ruas!
Não faço alarde da nossa miséria.
Deixo-me, num dia de chuva,
andar de ônibus pelo Rio nublado.
O calor do motor seca o dia
e me deixa à deriva.
Sou um palhaço atônito,
que não pinta a cara,
não dá cambalhotas,
não se veste de saias,
não contempla o horizonte,
não conta o ouro do Rei.
Apenas ama esta cidade
com um amor inexorável,
sempre olhado de cima...
Meu complexo é ser pequeno e feio
diante das tuas montanhas.


XIV

O Rio é um poema feito pra poucos.
Todo o resto são os afogados,
que a sobrevivência impede de amar.
Sê cínico, oh, poeta afogado,
que as árvores podres da cidade
não cairão sobre a tua cabeça!
Não cabem no verso desbotado
nenhum dos talentos adormecidos nas ruas,
nenhuma fantasia de Gioconda,
ainda que embigodada por Dali,
nenhuma canção medieval,
nenhum poema de Drummond,
nenhum cético, nenhum crente,
nada que não te compartilhe a dureza
de cidade-mãe devoradora.
O pergaminho onde está escrito
que o meu fim será em ti,
desbotou como a poeira na chuva.
Os teus regaços, as tuas fontes, os teus mares,
oh, Rio, todo poderoso,
não nos salvarão da morte inevitável.
E aí só restará a sujeira dos mendigos,
a catar os restos da tua onipotência.


XV (e último)

Estou completamente sem inspiração.
Por onde andam mesmo os versos toscos,
que não vêm mais ao meu encontro?
A cidade não mais me inspira...
O Corcovado não mais me inspira...
O Pão de Açúcar não mais me inspira...
Copacabana não mais me inspira...
Penha e Candelária não mais me inspiram...
A Praça Mauá não mais me inspira,
com suas ruelas prostituídas...
A Avenida Brasil não mais me inspira...
Os bondinhos e os “bondes” não mais me inspiram...
A polícia, chutando barracos
na favela, não mais me inspira...
A cara de pênis murcho do cardeal
não mais me inspira.
Oh, Rio, todo poderoso!
A cidade de São Sebastião está falida
e é preciso que se mate o santo
para que renasça a orgia.
Na Cidade Noite do Rio de Janeiro,
na Cidade Sol do Rio de Janeiro,
não cabem santos, salvo os dos terreiros,
que trepam com Oxum, Iansã e Iemanjá,
padroeiras dos desesperados.
Não quero mais saber da inspiração desnecessária.
Agora, vou comer meu amor na janela
e os nossos gemidos gritarão aos quatro ventos
que o poema morreu em aberto.
E o féretro sairá do mausoléu da Academia,
direto para os bordéis
que lho façam renascer.

IVERSON CARNEIRO