terça-feira, 6 de outubro de 2009

CONTO


O CASO DA VOZ


“Será?!” - o inspetor Jozildo encafifado.
Noite entrando na noite, acendendo os milhares de bicos de luz do morro ao fundo, que emolduram o som seco das rajadas.
A pequena rua do bairro dissimula uma calmaria que não convence o inspetor Jozildo. O movimento de carros é quase nenhum. Barulho, barulho mesmo, vem da igreja em frente e da radiola de ficha que toca CDs no botequim, onde um grupo de policiais comemora o sucesso da última incursão - dois traficantes mortos, mais de duzentas trouxinhas de maconha e um incontável número de papelotes apreendidos - na noite anterior. Agora estão de folga, que ninguém é de ferro.
O boteco é minúsculo e em seu salão espremem-se seis mesas. Cinco são para os fregueses, oito no mínimo em cada uma. A do fundo é cativa do apontador do bicho. No balcão freezer biscoitos, balas, paçocas e outras guloseimas, refrescos de diversas marcas e a velha caixa registradora. Em cima do balcão do fundo a pia engordurada, a cafeteira, o espremedor de laranjas, um velho liquidificador, um paninho sujo e rasgado e uma esponja esfarrapada. Copos e pratos mal lavados. Na parede, prateleiras devoradas por cupins equilibram garrafas de bebidas diversas. Cachaças, conhaques e licores baratos, uma paisagem com moldura e um poster do time do Flamengo dos tempos de Zico e cia.
A igreja, ao contrário, a despeito de ter nascido quase um barraco, cresceu e agora é um belo templo, orgulho do pastor e da comunidade.
“Quem pode mais do que Jesus?” - a voz, provocando os fiéis.
“Ninguém! Aleluia! - o povo, vibrante.
“Cantemos em nome do Senhor Jesus!” - a voz.
“Aleluia! Glória a Deus, Senhor!” - o povo. Cada vez mais envolvido.
“Hino” - todos cantam ao som de uma banda de guitarra, contrabaixo, bateria e teclado, tudo conduzido pela voz.
“Será?!” - o inspetor Jozildo. Vira mais uma dose de conhaque barato.
Um bêbado entra no boteco tropeçando nas próprias pernas e nas de outros fregueses. É empurrado mas não liga. Vive da própria desgraça e nela não cabem mais personagens. - “Puta! Puta safada! Eu te mato! Eu vô matá essa puta! Ninguém vai me fazê de corno! E vô matá o sacana do amante dela, também! Ninguém me faz de corno!” - o bêbado, inexoravelmente trôpego.
“Seu guarda, eu não sou delinquente…” - a radiola vomita o brega, como se também estivesse bêbada.
“Será?!” - o inspetor Jozildo, tentando entender o magnetismo daquela voz que assim, noite entrando pela noite, parece tão crente, tão convicta.
“Será?!”
Sete dias atrás ele recebera da chefia a missão de investigar uma série de assassinatos intrigantes. Primeiro foi uma mulher negra aparentando dezoito ou dezenove anos. Mais uma negra e por último uma loura, ambas parecendo ter a mesma idade da primeira vítima. Todas apresentavam marcas de tortura nos braços, pernas, seios; todas violentadas sexualmente e com uma apenas bala na cabeça. Mas o intrigante do caso mesmo são os CDs. A mesma música frenética, os mesmos gemidos, a mesma voz. Sobre o púbis de cada um dos corpos mutilados.
“Tira, gostosa, tira logo esse topzinho e dá esses peitinhos pra gente chupar! Isso, mostra, vira pra nós! Que peitinhos! Em nome de Jesus! Aleluia! Tira essa sainha de uma vez! Vira essa bundinha pra cá! Dá pra gente morder! Tira essa sainha e vira essa bundinha pra cá! Ai, que loucura! Agora tira a calcinha! Assim! Mostra a buceta pra nós! Dá ela pra nós! Ai, eu tô gozando! Gozemos todos juntos! Em nome de Jesus! Aleluia!” - a voz dos CDs.
O curso das investigações o levaram a uma boite do centro da cidade. Ao entrar deparou-se com três vitrines cercadas por populares que se masturbavam, onde três mulheres belas e jovens faziam strip-tease ao som da mesma música, dos mesmos gemidos e - “Tira, gostosa, tira logo esse…” - da mesma voz. A mesma gravação das fitas encontradas junto às mortas. “Elas certamente trabalharam ali. E dali, com certeza, foram levadas para a morte. “Quem as matou?” - o inspetor Jozildo. Não tinha a mínima idéia, a mínima pista. Agora, ali, naquele boteco, e aquela voz.
Sons de sirenes e rajadas vindos do morro. Ruídos de vozes abafadas vindas da rua. Carros poucos. Garrafas muitas. Cheias e vazias. Tim-tins dos copos. Bêbados, poetas, putas, cafetões, travestis se misturam.
Hinos e orações a plenos pulmões do outro lado da rua . A sinfonia da algazarra.
“Seu Elias, desce mais uma!” - o cafetão da penúltima mesa.
“Cadê o meu aipim frito?!” - o peão agarrado a uma puta.
“Algum irmão doente quer se curar em nome do Senhor Jesus?!” - a voz da igreja.
“Seu Elias, cadê a minha loura?” - o cafetão insiste.
“Me dá um caldinho, seu Elias?!” - o bêbado quase caindo.
“Eu, pastor!” - uma jovem bela e aparentemente cega.
“Eu também!” - um velho em cadeira de rodas.
“Seu Elias, a minha loura, porra!” - o cafetão, irritado.
“Já vai! Num tá vendo que essa merda de bar tá botando bebum pelo ladrão?! Eu sou um só, porra!
“Levanta e anda, irmão! Em nome do Senhor Jesus!” - a voz. O velho levanta e sai andando, primeiro claudicante, depois com firmeza.
“Ele andou, irmãos! Em nome do Senhor Jesus, ele andou! Aleluia!” - a voz, frenética.
“Aleluia! Em nome de Jesus! Aleluia!” - transe geral na igreja.
“Será?!” - o inspetor Jozildo.
Mais tiros e mais sirenes vindos do morro. Um comboio de pivetes algemados entre si, passa escoltado por um grupo de PMs. fortemente armados. São todos negros e cabisbaixos. Todos. PMs. e pivetes. Apesar da falsa arrogância dos fardados.
Os fregueses do boteco correm para a porta a fim de saborear a cena. Até o cafetão. Precisa aproveitar enquanto pode. Qualquer dia desses vai ser com ele.
Um silêncio domina a rua. Ou melhor, um pedaço dela.
Os policiais amigos do inspetor Jozildo também se levantam e pedem a conta. Pagam. “Vamos, inspetor.” - um policial para Jozildo.
“Não. Eu vou ficar mais um pouco.” - o inspetor Jozildo. Ele não quer ir embora. Ele quer ficar ali. Ele precisa ficar ali.
“Aleluia, irmã! Em nome de Jesus!” - a voz. Coloca as mãos sobre os olhos da mulher e aperta com força. - “Para onde só há trevas que o Senhor Jesus traga a luz! Aleluia!”.
“Aleluia! Em nome do Senhor Jesus!” - vozes da platéia em coro.
“Abre os olhos, irmã! O Senhor Jesus te devolveu a
luz! Aleluia!” - a voz, elevando fortemente o tom.
“Eu tô vendo! Eu tô vendo! Aleluia! Em nome do Senhor Jesus! Eu tô vendo! Aleluia!” - a mulher demonstrando espanto.
“Aleluia! Em nome de Jesus!” - toda a platéia. Histeria generalizada.
“Oremos, irmãos! Em nome do Senhor Jesus, oremos pelo irmão que andou! Aleluia!” - a voz estimulando o clima de histeria.
“Aleluia!” - todos.
“Oremos pela irmã que enxergou! Aleluia!” - a voz.
“Aleluia!” - todos.
“Oremos e cantemos para celebrar o Senhor Jesus!” - a voz canta acompanhada pela banda. Todos cantam.
A voz penetra cada vez mais nítida na intuição policial do inspetor Jozildo. Ele não tem mais dúvidas. É ela. Sabe que pouco ou nada pode contra aquela voz potente e poderosa. Mas não quer sair dali. Quer ficar ali. Precisa ficar ali. Para saborear a sensação do dever cumprido. Tem certeza que resolveu mais um caso. Ainda que tenha de calar. Mesmo que não possa falar nada pra ninguém.
“Tira essa calcinha duma vez, porra! Em nome de Jesus!” – “Seria a mesma voz?” - pensativo o inspetor Jozildo
“Essa voz!” - assustado com a própria descoberta.
“Mas, e se estiver enganado?”
“Será?!”.

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